Um disco que é um universo
Quatro anos após o aclamado O Futuro Não Demora, BaianaSystem retorna com “O Mundo Dá Voltas”, um álbum que não apenas confirma sua posição como um dos projetos mais inovadores da música brasileira, mas também expande suas fronteiras sonoras e temáticas.
Produzido por Daniel Ganjaman e Seiji, o disco é uma jornada que atravessa gerações, geografias e estilos, unindo o passado e o futuro em uma narrativa que celebra a diversidade e questiona as barreiras do tempo.
Com participações que vão de ícones como Gilberto Gil e Seu Jorge, jovens talentos como a cantora Melly até nomes internacionais como Dino D’Santiago e Claudia Manzo, o álbum é uma tapeçaria rica em texturas e significados.
Cada faixa é um capítulo de uma história maior, onde o BaianaSystem explora desde o reggae e o dub até o samba-rock e o afrobeat, sempre com a marca registrada do grupo: a fusão de tradição e experimentação.
A jornada sonora do BaianaSystem
1. “Batukerê” (com Antônio Carlos & Jocafi, Dino D’Santiago)
A abertura do álbum é um chamado ancestral. “Batukerê” começa com batucadas que ecoam os terreiros de candomblé, enquanto a voz de Russo Passapusso convida o ouvinte a celebrar a resistência negra. A participação de Antônio Carlos & Jocafi, lendária dupla dos anos 1970, cria um diálogo entre gerações, com versos que resgatam o lirismo da MPB clássica. Já Dino D’Santiago, com sua voz carregada de influências crioulas, adiciona uma camada internacional à faixa, que termina em um crescendo de sopros e percussão, como um ritual que prepara o terreno para o que está por vir.
2. “A Laje” (com Emicida, Melly)
Emicida entra com uma rima afiada, abordando temas como desigualdade social e a luta diária das periferias. A jovem Melly, por sua vez, traz um contraponto suave e melódico, quase como uma voz de esperança em meio ao caos. A guitarra baiana de Roberto Barreto e os arranjos de sopro da Orquestra Afrosinfônica elevam a faixa a um protesto dançante, típico do BaianaSystem. A letra, que fala de “subir na laje para ver o horizonte”, é uma metáfora poderosa para a busca de perspectivas em um mundo desafiador.
3. “Praia do Futuro” (com Seu Jorge, Antônio Carlos & Jocafi)
Inspirada na famosa praia de Fortaleza, “Praia do Futuro” é uma viagem sensorial que mistura samba-rock e poesia. Seu Jorge empresta sua voz grave e envolvente para narrar um amor perdido nas areias, enquanto os versos de Antônio Carlos & Jocafi (“Quando Deus fez a beleza, foi nela que ele pensou”) resgatam o lirismo da MPB clássica. A instrumentação é rica em detalhes, com guitarras que lembram o melhor do rock brasileiro dos anos 1970 e uma percussão que evoca o balanço do mar.
4. “Porta-Retrato da Família Brasileira” (com Dino D’Santiago, Kalaf)
Uma das faixas mais politizadas do álbum, “Porta-Retrato da Família Brasileira” é uma crítica social em forma de música. O termo “Ladina Améfrica”, cunhado pela antropóloga Lélia Gonzalez, guia a letra, que expõe a invisibilidade das mulheres negras na história do Brasil. A fusão de kizomba (com Dino D’Santiago) e afrobeat (com Kalaf) ilustra a diversidade cultural do país, enquanto os arranjos de sopro e percussão criam uma atmosfera densa e reflexiva.
5. “Magnata” (com Buguinha Dub)
O dub experimental domina aqui, com distorções e efeitos que lembram o Skank dos anos 1990. A letra ironiza a obsessão pelo capital, e o baixo de SekoBass cria uma base hipnótica. A participação de Buguinha Dub, conhecido por seu trabalho com música eletrônica, adiciona uma camada de modernidade à faixa, que termina em um caos controlado de sons e ruídos.

6. “Agulha” (com Claudia Manzo)
A cantora chilena Claudia Manzo traz um tom introspectivo à faixa, com vocais que flertam com o jazz e letras sobre vulnerabilidade. A instrumentação é minimalista, com piano do maestro Ubiratan Marques e percussão de Ícaro Sá, mas a densidade emocional é palpável. A letra, que fala de “costurar feridas com fios de esperança”, é uma metáfora poderosa para a resiliência humana.
7. “Pote D’Água” (com Gilberto Gil)
Gilberto Gil brilha em uma faixa que mistura improviso e poesia concreta, com referências à cultura Yorubá. A linha “Na família sempre haverá abrigo” resume o tema central do álbum: a busca por pertencimento em tempos de crise. A instrumentação é rica em detalhes, com guitarras que lembram o melhor da tropicália e uma percussão que evoca os ritmos africanos.
8. “Cobra Criada / Bicho Solto” (com Pitty, Vandal)
Pitty surpreende em uma letra que critica a indústria musical, enquanto o rapper Vandal reforça o tom de rebeldia. A fusão de rock e pagode baiano gera polêmica — alguns críticos acham a mistura caótica, mas é justamente isso que a torna memorável. A faixa é uma montanha-russa emocional, com momentos de explosão e outros de introspecção.
9. “Balacobaco” (com Anitta, Alice Carvalho)
Anitta participa por apenas 40 segundos, mas sua voz autotune divide opiniões: enquanto alguns a veem como um acerto pop, outros criticam o contraste com o trap e o pagode. A faixa, no entanto, é uma aposta certeira para o Carnaval, com uma batida contagiante e letras que celebram a alegria e a resistência.
10. “O Mundo Dá Voltas” (com Orquestra Afrosinfônica)
A faixa-título fecha o ciclo com arranjos sinfônicos e um refrão que sintetiza o álbum: “O passado que o futuro ainda não alcançou”. A melancolia jazzística prepara o terreno para o encerramento espiritual em “Ogun Nilê”, homenagem ao orixá guerreiro. A instrumentação é grandiosa, com a Orquestra Afrosinfônica criando uma atmosfera épica e emocionante.
Um legado que continua a girar
“O Mundo Dá Voltas” é mais do que um álbum — é um manifesto sobre resistência, ancestralidade e a complexidade das relações humanas. O BaianaSystem prova, mais uma vez, que a música é um ato de resistência, capaz de unir passado e futuro em uma só batida. Com esse trabalho, o grupo mostra que é possível inovar e explorar novos caminhos sem abrir mão da essência.
Ao mesmo tempo, o álbum nos convida a pensar sobre o papel da arte em um mundo em constante transformação. Em tempos de incertezas, o grupo nos lembra que a música pode ser um espaço de cura, de denúncia e de reinvenção. E é essa mistura de urgência e poesia que torna “O Mundo Dá Voltas” tão relevante.
O BaianaSystem não apenas reflete o espírito de sua época, mas também o transcende, apontando caminhos para o futuro. E, nesse sentido, o álbum não é só uma obra musical — é um chamado para que todos nós percebamos que, por mais que o mundo gire, sempre há algo a ser aprendido, celebrado e transformado.